domingo, 23 de março de 2008

A história de Harold

Era uma vez, num reino distante perto do pólo norte, um pato que sabia falar. Harold era seu nome. Harold tinha uma vida normal, para um pato.

Amanhecia, Harold, um prego pela farra que tinha feito no dia anterior, batera furiosamente no radio relógio que tocava sem parar na estante. Queria mais dez minutos, mas sabia que não podia. Levantou e foi lavar o rosto, tomou uma ducha e fez a gravação matutina de sua voz, para ver se tudo estava nos conformes. Ficou feliz quando ouviu o doce som substancial da vibração de suas cordas vocais. Gostava de gravar para apreço próprio.

Morava bem entre uns matos de grande porte, no norte do lago Jennifer, na Groelândia. Trabalhava em uma empresa de brinquedos que ficava uns 15 minutos da toca, no controle de qualidade. Ia para o trabalho no sábado também, por que gostava de adiantar o trabalho da semana com um pouco de paz, já que ninguém ia para lá no fim de semana.

Convivia muito bem entre humanos, já acostumados com a essa estranha característica que possuía. Tinha alguns problemas de adaptação, já que não tinha a mesma mobilidade nos membros e polegares opositores, mas se virava muito bem. Gostava de sorvete de acelga, prato comum naquela região.

Voltava do trabalho por volta das 21h30, gostava do que fazia. Lia um pouco, assistia televisão e adormecia com o controle na mão, até o despertador o acordar novamente. De domingo, único dia "livre", ia pescar. Nunca reclamou, em seus 34 anos de existÊncia, período longo para um pato, das condições que vivia.

Eu conheci essa figura em meados de 2005, por meio de um amigo virtual em comum. O apelido do pato no chat era Haroldquáquá - estranho, mas mesmo assim comecei a investigar a vida dele a fundo. Viagei para a Groelândia nas minhas férias de janeiro, e passei duas semanas procurando o longinquo lago Jennifer. Quando finalmente encontrei, fui recebido de braços abraços, quer dizer, asas abertas.

Conversamos durante horas, e só paramos por que a noite tinha tomado conta do céu. Eu nunca conheci um animal tão divertido e com uma voz maravilhosa. Ele me contou sobre tudo o que viveu, como foi tratado pelo circo, como trabalhou como dublador e como parou na fábrica de brinquedos depois de anos de preconceito.

Quero transcrever um trecho da entrevista sobre a época em que Harold dublava:

Quando você começou a dublar?
Bem, comecei a fazer isso por necessidade, por que o circo não dava muito dinheiro e me vi obrigado a sair dali pelos maus tratos que recebia. Desenvolvi minha voz nessa época, repito, por necessidade. Muitas pessoas não gostavam de um pato autodidata que tinha extremo talento para usar a voz.

Nasceu com cordas vocais, um atributo que lhe ajudou, e muito - obviamente-, a conquistar esse espaço.

Você gostava desse trabalho?
Não muito, como te disse, trabalhava lá por que me pagavam muito bem. Aprendi a viver como um humano, tinha carro, patinete, comia no MC Donalds, essas coisas que humanos estranhamente fazem.

Por que você saiu dessa empresa?
Não aguentava mais, todos eram muito, como direi isso, consevadores (risos). Um pato besta, eu sou, mas pelo menos um pato com algum senso crítico. O escritório era no States e todas as pessoas exibiam uma competição prejudicial. Comiam feito porcos - perdoe-me a comparação -, exibiam as conquistas materiais e se achavam reis do mundo toda vez que compravam alguma coisa que queriam.

Isso te irritava?
Não chegava a irritar. Mas me tirava a calma. Muitos dali eram alienados, não tinham senso crítico e assistiam ao Faustão de Domingo, fiquei muito irritado quando me pediram para trabalhar no Zorra Total, ofendido também. Tenho uma veia cômica ruim, mas nem tanto (risos). Percebi que isso se extendia por todo o mundo. Comecei a ler mais e a procurar mais sobre a história e percebi que sempre foi assim, um bando de pessoas que vivem limitados dentro de um sistema fadado à destruição.

O que te motivou a vir para este canto do mundo?
Essa desilução, acho. (Adquiriu um semblante mais sério). Gosto de pensar que ainda há um meio disso tudo acabar. Queria viver feliz e em paz com todos. Mas infelizmente não é possível hoje em dia. Li que a sociedade um dia vai mudar o sistema econômico por necessidade, espero que este dia chegue antes que eu morra, a vida de um pato é curta. Pena que eu tenho quase certeza que não vai mudar tão cedo.

Harold nunca chegou a ver tal mudança. Morreu em março de 2006, de velhice, mas feliz. Conseguiu entender a sociedade e desistiu quando estava no topo, porque não aguentava. Me fez prometer que faça minha parte para mudar algo nessa era do dinheiro, exploração e inidividualismo.

Harold sim foi um grande pato.

Um comentário:

Bruno Bello disse...

Sabe o que é engraçado? Existe um personagem (que até ganhou filme) que se chama Howard, o pato. Ele é o oposto do Harold. Ele trabalha, ama ser capitalista e gastar seu dinheiro com prostitutas, vive em um apartamento com uma secretária peituda e diz lutar quac-fu. Infelizmente suas histórias não são publicadas no Brasil, mas dá pra achar uns scans de fãs por aí.